A importância do contraditório no inquérito civil
- eduardo4667
- 23 de fev. de 2022
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1. O inquérito civil como um instrumento inquisitivo.
Em compreensão curiosamente aceita sem grandes divergências pela jurisprudência, costuma-se tratar o inquérito civil como um instrumento de natureza inquisitiva, no qual a abertura concedida a eventuais mecanismos de defesa fica facultada (atenção, portanto, à discricionariedade da questão) à análise subjetiva de sua necessidade e conveniência por parte do órgão investigador.
A razão de ser deste modelo, do ponto de vista constitucional, encontra sua força no uso do substantivo “litigantes” utilizado pelo constituinte originário no inciso LV, do artigo 5º da Constituição Federal, ao dispor que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Assim, de acordo com interpretação doutrinária rotineira, o princípio do contraditório e ampla defesa somente deve ser assegurado quando há efetivo litígio, ou seja, “interesses conflituosos suscetíveis de apreciação e decisão”.[1] Com efeito, inexistindo verdadeira disputa no bojo de inquérito civil, porquanto o mesmo se bastaria a apuração de fatos e colheita de provas para formar a convicção do Ministério Público, não haveria como se falar em vício de inconstitucionalidade por ausência de contraditório e ampla defesa nesta fase.
É justamente dentro desta linha de raciocínio que o Supremo Tribunal Federal se escora para replicar seu antigo, mas inabalável entendimento sobre a matéria:
“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório não são aplicáveis na fase do inquérito civil, pois este tem natureza administrativa, de caráter pré-processual, que se destina à colheita de informações para propositura da ação civil pública, não havendo, portanto, que se falar em réu ou acusado, nessa fase investigativa.”
(RE 481.955/PR, Primeira Turma, Rel. Min. Carmen Lúcia, 09/12/2009)
Até o momento, parece não haver dúvida de que jurisprudência e doutrina concedem um sobrepeso ao direito de investigação do Parquet em detrimento do contraditório e ampla defesa, fundamentado, repita-se, na lógica de que se trata de um instrumento pré-processual, no qual não haveria lide justificadora da oitiva dos potenciais investigados.
A pergunta que se põe, portanto, é se os argumentos teóricos acima apresentados se sustentam, no mundo prático, diante da realidade muitas vezes pouco democrática observada nos autos de inquéritos civis conduzidos Brasil afora. Pois é preciso se ter em mente que a dispensa do contraditório e ampla defesa no inquérito civil nada mais é do que a assunção consciente de um risco, em que se crê que a capacidade investigatória do Ministério Público, aliada ao seu direito de conduzir uma investigação desembaraçada, traz consigo mais benefícios à tutela do interesse público do que prejuízos.
2. Potenciais consequências da instauração de um inquérito sem acesso ao contraditório.
É sempre necessário que se tenha especial cuidado com argumentações simplistas, ainda que de boa-fé, quando a questão em jogo constitui justamente um dos pilares de um Estado Democrático de Direito, qual seja: o direito de produzir provas e de contraditar as acusações feitas contra si.
Nesta linha, causa espanto a associação feita por teóricos e tribunais no sentido de que a ausência de litígio corresponderia à ausência de prejuízos sobre o universo jurídico do investigado. Para aqueles que militam no lado oposto, a realidade parece ser muito distinta. Não raro, senão até mesmo a regra, o simples fato de ser alvo de uma ação civil pública já é capaz de gerar prejuízos ao réu em níveis significativos, muitas das vezes extrapolando as raias individuais e alcançando terceiros alheios à lide, mesmo que do ajuizamento da ação não resulte qualquer tipo de punição ao acusado.
E quais seriam os prejuízos?
Pois bem. À primeira vista, a dispensa de acesso ao contraditório e ampla defesa no inquérito civil facilita o ajuizamento de ações persecutórias, cujas razões variam desde desentendimentos políticos e profissionais a apelos midiáticos que forçam o Parquet a conceder respostas imediatas que satisfaçam a opinião pública. Cria-se, assim, um cenário em que não há como se aferir, de antemão, a real influência do(a) investigado(a) sobre o fato em apuração, possibilitando o ajuizamento de ações civis públicas absolutamente dispensáveis caso a ampla defesa não tivesse sido negada.
Por outro lado, mesmo quando os inquéritos civis são instaurados com o devido apreço à tutela do interesse público, a exclusão do contraditório continua a permitir o ajuizamento de ações dispensáveis, na medida em que o devido esclarecimento dos fatos investigados só virá a ocorrer nos autos de um processo judicial.
Afora este ponto, muito em razão da força institucional que circunda o Ministério Público, há, dentro de um viés psicológico, uma propensão a se tomar como genuínas as conclusões alcançadas nas investigações pré-processuais que fundamentam a causa de pedir da ação civil pública, sobretudo quando se está a tratar de casos em que há participação da mídia.[2]
Mas não é só. Recorrentemente, sem grandes cálculos consequenciais, defende-se a ideia de que não há prejuízo ao indivíduo ou entidade uma vez que o contraditório lhes será garantido nos autos do processo judicial, de modo que, na hipótese de se comprovar qualquer causa que leve à improcedência da ação, nenhum male terá sido gerado.
Esta, sem dúvidas, é uma retórica que só pode ser arguida por aqueles que não digladiam do lado da defesa, pois a experiência prática bem denota que ser alvo de uma ação civil pública não é algo que se possa comparar a uma mera oitiva em inquérito civil ou procedimento administrativo. Pelo contrário, tornar-se réu nestas causas pode gravar o indivíduo ou entidade com marcas financeiras e morais talvez irrecuperáveis.
Do ponto de vista financeiro, raros são os casos em que se conseguirá contratar assessoria jurídica que não cause importante impacto econômico sobre as contas do acusado, muitas vezes retirando a capacidade de sustento da pessoa física ou de uma operação equilibrada da pessoa jurídica.
Por certo, não se pode cogitar impedir o ajuizamento de uma ação civil pública tão somente por conta dos potenciais impactos pecuniários sobre a vida dos investigados, contudo, se esse impacto pudesse ser evitado em razão de um acesso à ampla defesa ainda na fase pré-processual, capaz de esclarecer os fatos de forma suficiente e de afastar a ocorrência da justa causa, o próprio interesse público exigiria a adoção desta última medida, porquanto menos lesiva ao investigado e menos custosa aos cofres públicos.
À parte da ideia pecuniária, temos, também, agora do ponto de vista da pessoa humana, os inevitáveis impactos psicológicos e morais, nada diminutos, que comumente acompanham o indivíduo que se torna réu de uma ação civil pública.
Como é de conhecimento geral, mesmo para aqueles que não atuam no mundo jurídico, ações judiciais tendem a se estender por período muito maior do que se poderia considerar razoável para a solução de uma contenda, seja em razão da construção processual brasileira ou por conta do verdadeiro cenário de assoberbamento do Poder Judiciário, impondo à parte que se defende o ônus de suportar, indeterminadamente, anos de trâmite processual muitas vezes evitáveis.
Em importante estudo sobre os impactos psíquicos advindos de uma falsa acusação criminal, cuja correlação não deixa de ser possível de ser feita com a acusação apresentada em uma ação civil pública, sobretudo se for o caso de improbidade administrativa, Brooks e Greenberg (2020) do King’s College[3] buscaram realizar uma revisão sistemática da literatura existente sobre a matéria, compilando os abalos emocionais usualmente constatados em vítimas de injustiças promovidas pelo Poder Público.
Dentre as mais comuns, podemos citar: (i) danos à reputação dos acusados, que passaram a sofrer verdadeira estigmatização de seus pares, inclusive familiares, por entenderem que a existência de uma acusação equivaleria à própria comprovação da culpa; (ii) transtornos de ansiedade e suas consequências; e (iii) perda de confiança no Poder Judiciário e nas demais instituições públicas, por razões autoexplicativas.
Com efeito, não nos parece razoável a afirmação de que o contraditório e ampla defesa poderia ser descartado na fase pré-processual, caso garantido no curso da ação. Como demonstrado, ser alvo de uma ação civil pública é, per se, uma experiência altamente desgastante ao indivíduo e instituições (cada qual por seus motivos), de modo que se deve repreender a costumeira e leviana defesa de que não há prejuízo tão somente no fato de ser réu.
3. A resposta legislativa
Interessado não só em estabelecer uma lei própria para reger o inquérito civil, mas, também, na solução dos problemas antes apontados, o Senado Federal deu início à tramitação do Projeto de Lei n. 233 de 2015, de autoria do Senador Blairo Maggi, cujos trechos da justificativa valem a pena transcrever:
“[...] a prática tem nos revelado que as investigações, embora meramente instrutórias, acabam sendo excessivamente prejudiciais ao patrimônio jurídico da pessoa investigada, culminando, não raras vezes, em exposição abusiva ou até mesmo em prejulgamento do investigado, de modo que a matéria exige maior reflexão.
[...] A melhor forma de garantir ambos os interesses é a mera observância dos direitos fundamentais das pessoas investigadas [...].
Assim, o presente projeto visa a aprimorar o regramento da matéria, para garantir os direitos fundamentais das pessoas, sem que isso importe em restrição ou prejuízo à atuação do ministério Público.”
Seguiu-se, portanto, de uma extensa proposta legal na qual se buscou garantir uma maior participação do investigado nos autos do inquérito civil, por mais que o próprio artigo 18 do projeto permitisse a dispensa de oitiva do investigado quando (i) houvesse justificada dificuldade em fazê-lo, (ii) fosse caracterizada a urgência ou (iii) pudesse implicar prejuízo à eficácia dos provimentos jurisdicionais.
4. Nota Técnica n. 12 de 2017 e uma breve resposta.
Inobstante a válida tentativa de garantir o direito fundamental ao contraditório e ampla defesa no inquérito civil, o projeto de lei não passou ao largo do radar do Conselho Nacional do Ministério Público, levando-o à redação da Nota Técnica n. 12 de 2017, a qual se apresentou veementemente contrária à inserção desta garantia fundamental no procedimento de sua titularidade.
Fortes em sua missão institucional, o CNMP reuniu quatro argumentos contrários à medida, aos quais passaremos a transcrever e responder sucintamente:
(i) Ao impor o contraditório também na fase de inquérito civil, o projeto de lei ensejaria riscos concretos ao êxito da apuração preliminar e, por consequência, aos direitos tutelados por ação civil pública. Nesta medida, “o protagonismo do investigado cria inexorável burocratização, por vezes intransponíveis, que compromete o esclarecimento da verdade.”
De imediato, deve-se questionar o que se entende por êxito de um inquérito civil. Se a resposta for a de que o inquérito civil deve tão somente se preocupar com o conhecimento mínimo dos fatos e das pessoas (físicas ou jurídicas) a ele relacionadas, pode-se, sim, concluir que a investigação é exitosa.
Numa lógica processual contemporânea, afeita à teoria substantiva do processo justo, pelo qual “uma pessoa tem direito não apenas a um processo legal, mas sobretudo a um processo legal, justo e adequado, quando se trate de legitimar o sacrifício da vida, liberdade e propriedade dos particulares”[4], torna-se inconcebível permitir seja alguém acusado de cometer um ilícito/irregularidade sem que lhe seja concedido o proporcional direito de se explicar.
Portanto, o próprio interesse público deveria caminhar no sentido de que uma investigação só pode ser considerada exitosa quando conseguir, efetivamente, delinear os fatos e seus participantes dentro de uma margem de erro tolerável, a qual só poderá ser obtida a partir da imprescindível participação dos acusados, afinal, sem isso, o quebra-cabeça que compõe a verdade persistirá sem as peças necessárias para que se construa a imagem geral do ocorrido.
(ii) “Ao chamar o investigado à participação ativa no procedimento, se replica, no âmbito das diligências conduzidas pelo Ministério Público, providências que deverão adotadas, em favor da defesa, na esfera judicial, criando, assim, um trabalho repetitivo e superposto de dois órgãos constitucionais - no exato momento em que a sociedade, ao contrário, espera do sistema de Justiça agilidade e eficiência nas providências tendentes a combater a lesão a interesses difusos e coletivos.”
Ao expor o raciocínio, o CNMP acaba confirmando a profundidade do que se apresentou até aqui, isto é, que o inquérito civil não é compreendido como um instrumento de elucidação dos fatos, mas, sim, como um burocrático meio (até mesmo dispensável) do qual o Parquet deve se valer para fundamentar a sua real intenção: o ajuizamento de uma ação civil pública.
É que se parte do pressuposto que o contraditório irá se replicar na fase judicial, apesar de ser claro que nem todo inquérito deve, necessariamente, resultar no ajuizamento de uma ação. A repetição do contraditório só deveria ocorrer, se (e quando) o mesmo não for capaz de rechaçar, de plano, a convicção do Parquet.
No entanto, as palavras utilizadas bem indicam que a ação civil pública muito provavelmente será ajuizada, sobretudo porque há uma pressão social para que seja concedida uma resposta imediata, ainda que isto resulte no completo desprezo do direito de defesa de um terceiro que venha a ser injustamente incluído no polo passivo da futura ação.
(iii) “Com a imposição do contraditório, se desdobram inúmeros outros regramentos instituídos exclusivamente no interesse privado do investigado que, acaso minimamente não atendidos, servem de fundamento para intermináveis arguições de nulidade processual a impedir a rápida resposta estatal aos ilícitos perpetrados.”
Ora, é sempre importante ressaltar que o interesse privado não surge de um limbo jurídico despreocupado com os valores coletivos, como se uma garantia individual fosse unicamente benéfica ao privado. Pelo contrário, a consagração de um direito individual é, também, em última medida, a consagração de um valor coletivo, no caso: a noção de que ao Estado não pode ser dado o direito de acusar alguém, sem antes apresentar as provas que robusteçam sua acusação. Logo, o regramento instituído no interesse privado é, sim, fruto do próprio interesse público.
Nesta medida, não há potencial para arguição de nulidade nenhuma, senão o oposto, quando o contraditório é ofertado ainda no inquérito civil. Retornando ao conceito da teoria substantiva do devido processo justo, a arguição de nulidade só poderia ser reproduzida justamente quando o inquérito civil fosse conduzido sem a observância do contraditório.
(iv) “Não raras vezes, é impossível determinar, com precisão, a qualidade de ‘investigado’ para cada uma das pessoas vinculadas à apuração, circunstância que dificulta o cumprimento das normativas referentes ao contraditório e, em razão disto, possibilita questionamentos futuros sobre o exato momento da investigação em que àquela condição efetivamente se concretizou.”
O problema desta afirmação não reside propriamente na sua veracidade, uma vez que, em certos casos, é verdadeiramente difícil determinar quem deve ou não ser considerado um investigado. A falha, portanto, está na conclusão adotada pelo CNMP a partir da constatação deste fato.
Veja-se, dentro de um radicalismo desmesurado, porque não se sabe ao certo se o privado é ou não um investigado, nega-se a todos a garantia fundamental. Em termos bastante mundanos, que bem elucidam o perigo do raciocínio, é como se uma mãe negasse comida a todos os seus cinco filhos, pois se sabe que um deles não está verdadeiramente com fome. Pune-se todos em razão de poucos.
Logo, conquanto o Ministério Público não saiba efetivamente quem é o investigado, a partir do momento em que se define quais serão os alvos da ação civil pública, a estes nomes, ao menos, deve ser concedido o direito ao contraditório.
5. Conclusão
Por meio do presente trabalho se procurou jogar luz, de uma só vez, sobre a falha argumentativa no sentido de que não haveria prejuízo na ausência do contraditório em sede de inquérito civil público, quando, a bem da verdade, a prática e a própria ordem constitucional vigente indicam justamente o contrário.
Em nossa visão, diferentemente do que entende o CNMP, a construção de um inquérito civil com ampla observância das garantias fundamentais, não só conferiria maior segurança jurídica aos cidadãos, como também serviria para diminuir o volume de ações civis públicas ou, ao menos, do volume de réus destas ações, na medida em que o órgão investigador teria acesso mais aprofundado à verdade dos fatos, aumentando, inclusive, sua credibilidade institucional frente à sociedade brasileira.
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Editora Lumen Juris, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1999, p. 649. [2] É a importante consideração feita por Mauro Roberto Gomes de Mattos: No âmbito da ação de improbidade administrativa ou na instauração do processo administrativo, a acusação mentirosa, reforçada pela argumentação apelativa, com eco na mídia, intimida e possui idoneidade para gerar primazia cognitiva no julgador e, assim, dar aparência de veracidade a um fato irreal.” In: https://jus.com.br/artigos/79239/assedio-processual-do-poder-publico-nas-acoes-de-improbidade-administ rativa-e-nas-investigacoes-disciplinares. [3] Brooks SK, Greenberg N. Psychological impact of being wrongfully accused of criminal offences: A systematic literature review. Medicine, Science and the Law. 2021; 61(1):44-54. doi:10.1177/0025802420949069. [4] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra. 7. ed. 2003. p. 494. E continua o autor: “Esta última teoria é, como salienta a doutrina norte-americana, uma value-oriented theory, pois o processo devido deve ser materialmente informado pelos princípios da justiça”.
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